O VELHO FÉLIX E SUAS "MEMÓRIAS DE UM CAVALCANTI"
Prefácio
Desde pequeno me habituei ao nome de Papai-outro, citado tantas vêzes nas conversas de família. Papai-outro contava isso da cheia de 56; Papai-outro contava aquilo do mata-mata-marinheiro; Papai-outro tinha nisto um muleque cair do alto da tôrre da Igreja do Carmo sôbre a praça cheia de gente, esmagando duas velhas; Papai-outro sabia de cor livros inteiros, poesias que ouvira recitar uma só vez.
Um dia quis conhecer o extraordinário Papai-outro; soube que tinha morrido há anos e que se chamara Félix. Continuei a ouvir histórias do velho desconhecido que minha meninice imaginava de barba mais branca que a de qualquer dos meus tios-avós e de unhas mais compridas do que as da minha tia-avó Sinhá, sua filha Lisbela....................................Tivesse vivido mais tempo e talvez se houvesse reconciliado, por espírito ou gôsto de ordem, com a República de Campos Sales e de Rodrigues Alves. Prudente de Morais sente-se que já não lhe era tão antipático quanto o Marechal Floriano; e não chegou a entusiasmar-se pela aventura monarquista de Saldanha da Gama.....................................Deus o livrasse de viver entre a canalha como José Mariano; de comer sarapatel ou mungunzá nos quiosques de pé de ponte, como aquêle político pitorescamente democrático e sinceramente liberal e por isso mesmo tão querido da gente do povo do Recife; de sai pelas casas dos pardos pedindo voto e botando mulecas no colo; de proteger capoeiras como Nicolau do Poço da Panela que perto da Rua da Praia - a velha Rua da Paria tão ligada à vida de Félix - um belo dia do ano de 1886 travou luta com Bentinho do Lucas ou Bentinho da Madalena - pai do muitos anos depois meu cozinheiro José Pedro (negro velho adamado que ninguém diria filho de valentão tão terrível) morrendo no combate entre os dois grupos - o de Nicolau e o de Bentinho - Pedro Canhoto e Severino do Pombal. Luta a cacête e depois a faca de ponta. O pretexto foi se ter sabido no Lucas que Nicolau andava dizendo que Bentinho não tinha homem de coragem do seu lado. O motivo não deixou de ser político: Bentinho tinha simpatias pelos "Conservadores". Dizem que o pachola do negro até usava pêra que era o distintivo "Conservador": pêra, barba ou cavanhaque.
São José - em cujos sobrados morou tantas vêzes Félix Cavalcanti com a sua família enorme..................
No tempo de Félix a capoeiragem ostentava ainda todo o seu viço; e da Rua da Jangada e Gameleira estavam sempre descendo rêdes não só de bexiguentos como de feridos. Rêdes brancas de mortos. Rêdes vermelhas de gente esfaqueada e gemendo: quero água, quero água! Mal começara a campanha do Inspetor José de Lima e dos seus soldados de facão rabo-de-galo contra os reis a faca de ponta protegidos e até compadres de José Mariano e de outros políticos importantes; gente arranchada pelos mucambos e "quadros" de São José, de Santo Amaro, do Coculo, da Aldeia do Quatorze, da ilha das Ostras, dos Sete Mucambos, do Pombal, do Lucas.
A capoeiragem eram então uma fôrça a serviço da política partidária, tão intensa no Recife do século XIX. O burgo lìricamente comparado pelo poeta a Veneza:
"Veneza americana boiando sôbre as águas"
Recife --- 1939-1957.
G . F.
Fonte: FREYRE, Gilberto. O Velho Félix e suas "memórias de um Cavalcanti". Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. 142p.
1 comentario:
.........................Capoeiras negros e mulatos, cabras ligeiros na arte da rasteira, do rabo-de-arrais, do arrastão, no manejo do cacête, da navalha, da faca de ponta, tornaram-se guarda-costas não só de homens do govêrno mais violentos como de políticos oposicionistas mais irrequietos. Os capoeiras do Recife, como os do Rio, eram quase sempre mulatos de gaforinha, andar gingado, lenço encarnado no pescoço. Por debaixo da camisa, raro era o que não levasse oração fechando-lhe o corpo às balas da polícia e às facas dos outros cabras. Às vêzes ostentavam tatuagens no peito, no braço ou noutras partes do corpo: corações, signo-salmão, âncoras, sereias e nomes de mulheres. Quase todos gostavam de sua branquinha ou aguardente de cana; de seu violão; de ostentar seu dente de outro; e todos tinham nomes de guerra pitorescos: Canhoto, Sabe-Tudo, Bode-Ioiô, Pé-de-Pilão, Rabo-de-Arraia, Bentinho do Lucas, Nascimento Grande.
Nascimento Grande foi o último grande capoeira do Recife: morreu há três quatro nos, já velho e doente, no Rio de Janeiro, num sítio de Jacarepaguá onde o acolhêra José Mariano Filho. Passara da Monarquia à República; eu próprio ainda ovi, com olhos de menino de onze anos, seguindo como guarda-costas o carro triunfante - carro aberto, a capota arriada - em que o General Dantas Barreto, duro, pequeno e de pince-nez, entrou em 1972 no Recife ao som da Vassourinha:
"Salvai, salvai, querido general !"
Recife --- 1939-1957.
G . F.
Fonte: FREYRE, Gilberto. O Velho Félix e suas "memórias de um Cavalcanti". Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. 142p.
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