domingo, 27 de febrero de 2011

1907- RIO- Capoeiras dominaban Campo de SanT’Anna

(PAG 8) Perto da casa, no viso dum outeiro esmaltado de madresilvas, avultava, branca e illuminada, acapellinha de São João, padroeiro da fazenda. Em baixo no começo da ladeira, em sitio agreste, verdadeiro algar, escondia-se a choça de Raymundo, velho escravo, typo sombrio, macambúzio, banzeiro, que evitava todo convivio, preferindo a vida alapardada no sórdido tugurio, onde resmoneava cantos soturnos ao som tristonho do urucungo, á intimidade da gente que, seja dito de passagem, não o via com bons olhos, tendo-o, como era crença, por aparceirado com o demónio.
(Campo de SanT’Anna, PAG 56) A' noite , ninguém ousava atravessal-o Ladrões e capoeiras dominavam-no ; os assaltos eram frequentes e os urbanos, se ouviam gritos na escuridão, faziam-se surdos, não se atrevendo a metter-se com os valentes que assenhoreavam o deserto. Pobres morcegos muito soffriam, vingandose nos pobres que lhes cabiam nas mãos. Nas ruas do Senhor dos Passos, Sabão, Alfandega e S. Pedro, na parte mais próxima do Campo, as casas de rotulas tresandavam como aringas. Eram habitadas por negros que as dividiam em compartimentos separados por uma cortina. Lá dentro fervia o « quimbande », dava-se fortuna, faziam-se philtros e despachos e nas vésperas das festas batucava-se frenéticamente ao som de atabales, ao tinir de pratos de louça repinicados pelas mulatas que se esguelavam em guinchos histéricos saracoteando lascivamente. Ainda encontrei a fama sinistra do Jucá Rosa e lembro-me de um negralhão petulante, que vestia de branco e passava sempre por entre negros zumbridos, como um rei, cuja mão muita vez eu vi beijada por mocinhas louras e crianças que as mais levantavam para receberem a benção do feiticeiro.
FUENTE: Palestras da tarde [microform] (1911), Author: Coelho Netto, Henrique, 1864-1934, Publisher: Rio de Janeiro : H. Garnier, Language: Portuguese

1 comentario:

AEC dijo...

(pag 72-73) Não raro, por uma futilidade — coisa de um calo pisado, de um esbarro propositado ou involuntário — levantava-se uma discussão na rua. Palavra daqui, palavra dali, um nome crespo escandalizando as senhoras e dous adversários frente a frente, chapéu á nuca, olhos meio de esguelha. Súbito esbarravam-se. O povo abria — um salto, um raspão na terra : era o rolo. Os « cabras
)) eram direitos, valiam-se. E era vel-os aos pulos, rastejando agachados na ligeireza da bahiana,
ágeis no rabo de raia, destros na « cocada )) até que, enfurecidos, sacavam as navalhas.
Espraiava-se a debandada espavorida.
A casa fechava-se na confusão dos faniquitos das mulheres e do protesto dos homens. Apitavam,
fartavam-se de apitar, até que os urbanos appareciam em magote, também apitando, jade facão em punho, espaldeirando a torto e a direito. Os capoeiras ficavam isolados, gingando, com as sardinhas empalmadas e os morcegos,
sempre bufando nos apitos, saracoteavam, sem animo de avançar, porque os heróes, solidários na defesa, acomadrados por espirito de malta, faziam lettras mostrando o « aço », que alumiava. Súbito, em dous saltos espernegados, punham-se a salvo e, de longe, vaiavam os « trouxas » aos berros, desaíiando-os.
FUENTE: Palestras da tarde [microform] (1911). Author: Coelho Netto, Henrique, 1864-1934
Publisher: Rio de Janeiro : H. Garnier
Language: Portuguese